domingo, 22 de fevereiro de 2009

Carnaval

Bom dia
"É carnaval, nada pareçe mal"
Ora ai está o carnaval e como diz o povo esta é uma época em que certas pessoas aproveitam a "sonolência" cívica das pessoas para enveredar por todas e mais algumas artimanhas que, ou não fazem no resto do ano ou as fazem às escondidas.
Quem é que acha piada em destruir património ou danificar alheio? A brincadeira tem limites, e esses limites à muito foram ultrapassados.
Durante décadas brincou-se com carros de vacas, caixotes do lixo, mesas, cadeiras e vasos, e nunca se ouviu dizer que alguma dessas coisas tivesse sido completamente destruída.
Essas pessoas que fazem isso devem sentir-se impunes à sombra da famosa frase acima escrita, mas não é bem assim, há direitos e deveres que tem que ser respeitados, tais como a propriedade alheia e a integridade física dos outros, entre muitas outras que vão para trás das costas nesta altura do ano.

Ganhem juízo, e não envergonhem mais a nossa terra nem os vossos pais!

Tenho dito.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Casais Monizes

Boa tarde

Hoje venho colocar novamente uma contribuição do Sr. Carlos Pereira, desta vez acerca dos nossos amigos dos casais monizes. É uma transcrição de uma reportagem feita em 1943 sobre essa linda terra na qual se incluem algumas digitalizações da mesma.

Casais Monizes – A serra dos Degredados

Reportagem de: Frederico Alves

In publicação periódica: Multidão, ano I, n.º 1, Lisboa, 20 de Abril de 1943

No alto de uma serra, entre pedras, rebanhos e ventos de tempestade trezentos seres humanos cumprem pena de degrêdo, fieis à tradição.

Foi, para lá, uma leva de condenados. As mulheres e os filhos seguiam-nos, carpindo. A gritaria ecoava por montes e vales, atrás, praguejavam os guardas. Das moitas de carrasco, erguiam-se, em vôo rápido, bandos de perdizes. Muito alta, pairando, a mancha de um milhafre. No vale, entre duas encostas, pulou um coelhinho nervoso. Um guarda atirou-lhe. Acertou em cheio. Riu, gostosamente. Sabe bem, matar!... A caminhada estava quási no fim. O piso, cada vez mais bravo. Tojos e urzes. Aqui e além, uma arvorezita mirrada e cinzenta. Rochas e calhaus. Como se do céu tivesse caído uma abada de pedras. O próprio arremedo de estrada – traçado por quem? – era uma carapaça de bicos cortantes, eriçados. Os pés descalços sangravam, chaguentos. Aquilo nem era caminho de azémolas que escorregariam e se precipitariam nas ribanceiras, dos lados. Depois, um pouco mais adeante, até os tojos e as árvores mirradas desapareciam de todo. Só ficavam pedras. Os corpos arrastavam-se, penosamente, carregando mochilas, pesadas como fardos. Nem traço de ribeira; nem de fonte; nem de poço. Só as lágrimas das mulheres e das crianças não estacavam nunca. Agua salgada, pelo sal da amargura e da dôr. No cimo do cabeço, os guardas disseram ainda: - É aqui! Todos pararam. O dia estava radioso. Mas o vento uivava como de tempestade.

Largaram as trouxas no chão. Os meninos, derreados de fadiga, caíram sôbre as pedras. Primeiro, os degredados olharam os guardas. Depois, vaguearam o olhar torvo pelos morros vizinhos, mais baixos. Eram verdes e castanhos, rôxos e avermelhados, manta de retalhos polvilhada de copas ou sulcada de lavras. Pressentia-se unidade e frescura. Até o chão fazia pouco dêles – raça de escravos!

Então, o guarda tornou a falar:

- Fiquem aí e que os raios os partam! Se um de vocês fugir, os homens que vivem por detrás daquêle cabeço, e daquêle e daquêle… (o guarda, num gesto largo, abarcava os montes todos, em roda) matam-nos como a cães!

Ficaram os homens os homens, as mulheres e as crianças entregues a si e à desolação das pedras. Mas, ao contrário do que seria de esperar, tomados de fúria, trovejando pragas e maldições, os degredados fizeram casas, muros e moínhos daquelas pedras. Fizeram pão, talvez. Viveram – numa palavra.

Correram os anos. Os homens fôram morrendo, um após outro. Mas os filhos e filhas haviam misturado o sangue. Por isso cada vez havia mais casas, no alto do monte. Por tôda a parte surgiu o calor de vidas novas. Só uma coisa os homens não conseguiram mudar: a natureza do chão pedregoso e indomável. Também com o andar dos tempos os vizinhos se esqueceram de que no monte só viviam condenados. Eles próprios, porém, nunca esqueceram a sua condição.

E hoje, embora possam ir onde queiram, ali ficam, vidas inteiras, sem nunca de lá saírem. Poderiam descer a encosta, para terras mais férteis, junto das nascentes e dos regatos. Nada os impediria. Mas, nada realmente? Sim, qualquer coisa os prende. Amarra-os, por ventura, a fidelidade cega a uma lenda. Laço que os faz permanecer fundidos e solidários com as rochas, continuando, eternamente, a arrastar o grilhão dos avós criminosos. A águia engeita os filhos que não podem fitar o Sol. Os homens, ali, não engeitam as mães dos pais que um dia se tingiram de sangue.

Esta é a lenda vigorosa dos Casais Monizes, flagelo de pedra encravada no solo rico de olivedos, vinhas e trigais da antiga Estremadura. Mas a realidade não anda longe da lenda.

Logo adiante do oásis, a Terra desaparece: é como se se passasse do paraíso para o inferno

Os Casais Monizes existem. Ficam a 15 quilómetros de Rio Maior, vila da beira da estrada de Santarém a Caldas, a 30 quilómetros da primeira e a 20 da segunda. São ainda longe de Alcobertas, aldeia alastrada por um vale, cortada de um veio de água em que abundam as enguias, grossas como pulsos, cercada de laranjais e de uma cintura de montes. Há uma anta, na aldeia. Abafaram-na com uma capela de mau gôsto. E à esquerda, a meia encosta de um morro, escancara-se a boca de uma gruta maravilhosa que o Turismo ainda não descobriu. À direita do monte, outro monte. E é por detrás dêsse, no cimo de um cabeço, que os Casais Monizes emergem das cristas de rocha.

As últimas terras aráveis ficam a meia encosta, numa fundura. Quadrado pequeno, talhado e retalhado em múltiplas fazendas. Terra fraca donde o homem, à custa de suor, tira minguado rendimento.

Cá em cima, à beira do caminho, duas ou três árvores incrivelmente frondosas. E defronte, um cruzeiro pedindo padre-nossos e ave-marias… Mas logo adeante do oásis, a terra desaparece, inteiramente, sob a rocha. É como se se passasse, sem transição, do paraíso para o inferno.

O vento uiva, fustiga, esbarra nos calhaus. Deante da massa cinzenta de muros e casebres, de pedregulhos amontoados, dir-se-ía que chegámos a uma cidade de outras eras, completamente morta e fria. As ruas são labirintos. De uma não se avista outra. Os muros são altos, mais altos que os homens. Aparência fantástica, como de lavas de um vulcão. Todavia, desde o princípio até o fim dos casais, pulsam trezentos seres humanas vivem e lutam.

Os pés escorregam e retalham-se nos ca(minhos?) [1]. Desemboca-se de uma rua noutra rua, (…)[2] sempre a ilusão de se estar no mesmo sítio (…) mais para cima o piso melhora e as ruelas (…)ram bem. Cobriram-nas de rama de ale(crim?). Junto das casas, homens e mulheres. Cisc(…) no chão, os gaiatos. E, de mistura, galinhas e porcos.

As casas são baixas. As portas são baixas. Porta da altura de um homem é alta. Lá dentro, dois, três compartimentos, o máximo. E não há chaminés. Geralmente também não há janelas. Vidraças é coisa rara. Melhoramento de luxo, de algum rapaz que, por acaso, não fugiu às sortes…

Dentro, no escuro, uma velha fia na roda. O fio será mandado a Rimal ou à Mendiga. Lá ainda se não perdeu a tradição de tecer. Noutros tempos, os homens andavam de calção, com meia de fora, até o joelho. Agora não. O trajo é banal. Mais do que banal: miserável. Para o sol ou para chuva, homens e mulheres usam uma saia de droga, lã de carneiro que nunca viu tinta. Deitam-na pela cabeça, como as biucas das ilhas.

Num casinhoto moderno que estraga o conjunto, é a escola. Ali vive, todo o ano, a mestra, uma rapariguinha meio fanada porque lhe falta o ar empèstado da cidade. Todos vão à escola. Mas vão de má vontade, por “môr do gadeco”. Pois quem há-de levar o gado ao alecrim?

Os meninos são puros. Muitos chegam a homens tão virgens como as noivas. A maioria casa religiosamente, na capelinha moderna e pobre. Depois, começam os trabalhos. Vêm os cachopos. No fim de contas, bem vistas as coisas, os gaiatos não empeçam muito. Medram por ali, como o alecrim e as ovelhas.

É gente prolífera. Trezentas almas. Cincoenta fogos. Seis bôcas em média por cada teto.

A gente do Povo é fecunda e por isso foi preciso conquistar à rocha alguns palmos de má Terra.

Às vezes, os meninos não chegam a criar-se. Morrem. Nesse dia, os Casais despovoam-se. Tôda a gente vem, de cambolhada, pela encosta abaixo, atrás do caixãozinho. Deixam tanto dó, as crianças!... Se fôsse pessoa grande, mesmo estimada, oito vizinhos bastavam para carregar o fardo. As mulheres ficam em cima, na toca, a carpir. E sempre, no fundo do horizonte imutável, a sentinela azul e parada da Serra de Montejunto, onde outros trabalham, sofrem, e, às vezes, sorriem…

Baptizam os filhos, casam no altar. Cada fôgo dá ao padre um alqueire por ano, Entêrros e baptizados são à parte. Mas o povo não é compenetradamente religioso. Os seus actos de culto são puramente imitativos. “A gente faz porque já encontrou cá isto”. Sim, creem que há Deus. Simplesmente não o adoram pela causa mais primária: porque nunca o viram. Já com a Senhora de Fátima… Ah!... Ela apareceu a pastorinhos humildes, criaturas tangíveis como êles, serranos que viviam no meio do gado, do carrasco e dos penedos. E os pastorinhos juraram que a tinham visto que tinham falado com ela. Por isso, em Maio e Outubro, os casais despovoam-se. Pela crista das serras, a pé, os homens, as mulheres e as crianças dos Casais Monizes vão direitos a Rimal, à Mendiga, a Sarrabantoso, a Alcaria, à Barrenta. E de Barrenta para lá é um troço bem puxado. Não vêem Nossa Senhora. Mas no ano seguinte voltam, na esperança…

O grande problema desta terra de pedras e escravos é o problema económico. É o único aspecto da sua existência brava que realmente empolga.

Os que têm uns palmos, lá no fundo, nos Sourões, dão-se por felizes. Contudo, o solo é ruim seja onde fôr. Quem deitar um alqueire de semente, passa o ano na fazenda e não dá vencimento. Faz tristeza olhar os cabeços e só topar seixos, calhaus e rochas. Como vão viver os filhos, quando as propriedades forem tão pequenas que não comportem mais retalhos? Será, então necessário emigrar? Talvez não. O homem é um ser estranhamente adaptável.

Em todo o país talvez não haja outro sítio onde se côma pão de cevada. É caso tão raro, senão único, que a Federação dos Trigos não quis manifestar a cevada como cereal panificável. Horas de trágica ansiedade nos Casais Monizes. Mas triunfou a razão. E os moinhos do planalto do meio continuaram a moer… Á cevada juntam alguns bagos de milho, trigo, ou centeio… do que aparece, em suma. Por isso o pão se não chama pão. Chama-se mistura, e é negro e espesso. Como conduto, xixaro. E em dia de festa, um pouco de carne da matança.

Mas o mais extraordinário, na vida dêstes homens, é que têm dinheiro. Como o conseguem, então? Como podem dar cem escudos de cada vez que o médico galga a encosta? Verdade seja que êle só lá vai na última. Morre-se pouco por ali. Pouco e tarde. São muitos os velhos de oitenta e noventa anos.

Bem, voltando atrás, o facto é que têm dinheiro. Estabelecimentos não existem. Apenas uma taberna que só abre ao domingo. Onde gastar, então, o dinheiro? Ali não é possível fazer estravagâncias.

Mas o que é mais importante: se nada se cultiva, se o pouco que a terra dá mal chega para comer, qual é a fonte de rendimento?

O alecrim é a base da existência das trezentas almas dos Casais Monizes.

E o gado. Pelo gado, os homens dos Casais Monizes fazem todos os sacrifícios. São essencialmente pastores. Os rebanhos alastram-se pelos cabeços. E nas ruas do povoado, récuas de porcos, bandos de galinhas e perús. Aí está a grande mina de oiro. Só não criam patos. Coitados, como hão-de criá-los se a água escasseia? Àgua, apenas a da chuva, no fundo dos poços, cavados na própria rocha. É dessa que bebem e com ela cosinham. Um peixe, lá dentro, acham que basta para absorver as impurezas. Assim, realmente, não é possível criar patos…

Mas voltemos ao gado. Reveste-se de uma importância vital a sua criação. O gado dá-lhes a lã de que se vestem e a carne que vendem ou comem. Principalmente que vendem. E o gado, de que se alimenta êle? Do alecrim, sôbretudo. Por isso, e por mais estranho que pareça, a base essencial da existência das trezentas vidas dos Casais Monizes é o alecrim. Porque o alecrim atapeta as ruas, enfeita os cabelos das noivas, desinfecta os quartos dos doentes e, acima de tudo, sustenta os rebanhos. E como se isto fôsse pouco, a sua flôr é o manjar predilecto das abelhas. E a abelha dá o mel, alimento rico e negócio rendoso.

Pelo alecrim, o povo dos Casais Monizes é capaz de tudo. Que lhe roubem uma alfaia agrícola. Mas que não bulam num pé de alecrim. Noutros cabeços, noutros lugares, em Mato Rei, por exemplo, o alecrim pouco significa. São terras boas, onde a água brota e o chão é fértil. Por isso, o alecrim é, apenas, comércio de luxo, produto de exportação.

Venham, pois, os de Mato Rei, à encosta de cá e arranquem o alecrim. Venham…

E verão como os dos Casais Monizes, homens pacíficos da rocha, se mudarão, subitamente, em selvagens. Neles despertará a voz do sangue assassino e correrão à guerra com facas, foices, chuços e caçadeiras. E sem respeito pela vida alheia atirarão sôbre os vizinhos, retalhá-los-ão à facada, matá-los-ão como quem mata um coelho bravo – animal detestado. E que se não queixem. Porque vieram comprometer, criminosamente, o futuro dos cachopos dos Casais Monizes. Sem alecrim, morrerão de fome. Sem êle a raça hospitaleira mas bravia dos serranos extinguir-se-á. Porque êsses homens que são capazes de guardar uma carta, ingenuamente, a vida inteira, como se se fôsse um tesoiro incomparável, defendem, como feras, a intangibilidade dos seus pés de alecrim, arbusto sagrado em cuja flor se encerra o segredo do existência de trezentos seres humanos.



[1] Lacuna no texto

[2] (…) Lacuna no texto












Desda já o meu muito obrigado ao Sr Carlos já que eu não tinha o conhecimento desta publicação e acho que grande parte da população também não a deve conhecer

Bom fim de semana